Sob a bomba: crime organizado avança no setor de combustíveis e drena bilhões em impostos
Duas operações em 2025 levaram a aprovação de lei que pune empresas que deixam de pagar impostos propositalmente; relembre
Um ato simples, presente na rotina de milhões de brasileiros — abastecer o tanque do carro — escondia uma sofisticada engrenagem de financiamento do crime organizado.
A dimensão do esquema veio à tona neste ano após investigações conduzidas com apoio de forças policiais estaduais e federais, além de órgãos de controle, como a Receita Federal.
Na manhã de 28 de agosto, a Receita Federal, em conjunto com órgãos do Estado de São Paulo, cumpriu medidas contra mais de 190 alvos, entre pessoas físicas e jurídicas, suspeitos de crimes contra a ordem econômica e tributária, além de lavagem de dinheiro. O foco principal da operação foi a atuação do PCC (Primeiro Comando da Capital) no setor de combustíveis.
As estimativas apontam para uma movimentação de cerca de R$ 52 bilhões por parte da facção, com o uso de aproximadamente 40 fundos de investimento para ocultar recursos ilícitos.
Segundo a Receita Federal, o “sofisticado esquema” permitia não apenas a lavagem de dinheiro proveniente de outros crimes, mas também a obtenção de lucro ao longo de toda a cadeia produtiva do setor.
“O uso de centenas de empresas operacionais na fraude permitia dissimular recursos de origem criminosa. A sonegação fiscal e a adulteração de produtos ampliavam os lucros e prejudicavam consumidores e a sociedade”, informou o órgão.
À época, foi constatado que importadoras ligadas ao esquema adquiriam insumos químicos para a fabricação de combustíveis, financiados com dinheiro de origem ilegal. Somente entre 2020 e 2024, os investigados importaram mais de R$ 10 bilhões em combustíveis.
Mais de 1.000 postos
Distribuidoras, formuladoras e postos de combustíveis também sonegavam tributos de forma reiterada em suas operações de venda. “A Receita Federal já constituiu créditos tributários federais que somam mais de R$ 8,67 bilhões contra pessoas físicas e jurídicas integrantes do esquema”, afirmou o órgão.
As ações criminosas tinham como objetivo ocultar atividades ilegais e ampliar a margem de lucro. Auditores-fiscais identificaram irregularidades em mais de 1.000 postos de combustíveis distribuídos por dez estados: São Paulo, Bahia, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, Rio de Janeiro e Tocantins.
Segundo as investigações, a maioria desses postos funcionava como ponto de recebimento de dinheiro em espécie ou por meio de maquininhas de cartão, canalizando recursos do crime para a organização criminosa por intermédio de contas bancárias ligadas ao esquema de lavagem de dinheiro.
“Entre 2020 e 2024, a movimentação financeira desses postos chegou a R$ 52 bilhões, com recolhimento de tributos incompatível com o volume de atividades. Os estabelecimentos foram autuados em mais de R$ 891 milhões”, informou a Receita.
Ocultação
Os valores eram inseridos no sistema financeiro por meio de fintechs — empresas de tecnologia voltadas à oferta de serviços financeiros digitais. A Receita Federal identificou que uma fintech de pagamentos atuava como um “banco paralelo” da organização criminosa, com movimentação superior a R$ 46 bilhões entre 2020 e 2024.
As mesmas pessoas controlavam outras instituições de pagamento de menor porte, utilizadas para criar uma dupla camada de ocultação. A fintech também recebia diretamente valores em espécie. Entre 2022 e 2023, foram realizados mais de 10,9 mil depósitos em dinheiro, que somaram mais de R$ 61 milhões — prática considerada incompatível com a natureza de uma instituição de pagamento, que opera apenas com recursos escriturais.
Segundo a Receita, o uso de fintechs pelo crime organizado explora brechas regulatórias que dificultam o rastreamento do fluxo financeiro e a identificação individualizada das operações dos clientes. Uma dessas brechas envolve a utilização da chamada “conta-bolsão”, aberta em nome da própria fintech em um banco comercial, por onde transitam, sem segregação, recursos de todos os clientes.
Era por meio desse mecanismo que ocorriam as compensações financeiras entre distribuidoras e postos de combustíveis, assim como entre empresas e fundos de investimento controlados pela organização criminosa. A fintech também era utilizada para o pagamento de colaboradores e despesas pessoais dos principais operadores do esquema.
Outra fragilidade apontada refere-se à ausência de obrigatoriedade de prestação de informações à Receita Federal sobre operações financeiras de clientes por meio da e-Financeira. Em 2024, o órgão promoveu alterações normativas para ampliar a transparência dessas instituições, mas as mudanças foram revogadas no início de 2025 após a disseminação de desinformação sobre o tema.
Com isso, a fintech consolidou-se como núcleo financeiro central da organização criminosa, praticamente invisível aos mecanismos de controle e fiscalização.
Blindagem
O dinheiro de origem ilícita era reinvestido em negócios, propriedades e outros ativos por meio de fundos de investimento que recebiam recursos da fintech, dificultando a rastreabilidade e conferindo aparência de legalidade aos valores.
A Receita Federal identificou ao menos 40 fundos de investimento — multimercado e imobiliários — com patrimônio estimado em R$ 30 bilhões, controlados pela organização criminosa. A maioria consiste em fundos fechados, com apenas um cotista, geralmente outro fundo, criando múltiplas camadas de ocultação patrimonial.
Entre os bens adquiridos estão um terminal portuário, quatro usinas produtoras de álcool — além de duas em parceria ou em processo de aquisição —, cerca de 1.600 caminhões para transporte de combustíveis e mais de 100 imóveis. Entre eles, seis fazendas no interior de São Paulo, avaliadas em R$ 31 milhões, e uma residência em Trancoso (BA), adquirida por R$ 13 milhões.
Há indícios de que esses fundos eram utilizados como instrumentos de blindagem patrimonial e de que as administradoras tinham conhecimento e participação no esquema, inclusive deixando de cumprir obrigações junto à Receita Federal para ocultar a movimentação financeira.
Bilhões em tributos, um único devedor
Em 27 de novembro, outra operação colocou sob os holofotes o maior devedor de impostos do Estado de São Paulo: o grupo Refit. A operação, batizada de Poço Lobato, cumpriu 126 mandados em cinco estados e teve como alvo uma distribuidora localizada em Catanduva (SP).
O grupo é apontado como o maior devedor de impostos do Brasil, com débitos superiores a R$ 26 bilhões. As investigações indicam movimentação superior a R$ 70 bilhões em apenas um ano, com apoio de empresas do próprio grupo, fundos de investimento e offshores — incluindo uma exportadora no exterior utilizada para ocultar lucros.
Segundo a Receita Federal, o grupo mantém relações financeiras com empresas e pessoas investigadas na operação Carbono Oculto. Após a primeira ação, o setor sentiu impacto direto, inclusive com a paralisação de distribuidoras investigadas.
As autoridades afirmam que isso levou o grupo a reformular o modelo financeiro, adotando estratégias ainda mais sofisticadas e lucrativas. A Refit também apareceu em outra investigação, deflagrada em setembro, relacionada à importação irregular de combustíveis.
Quatro navios, com cerca de 180 milhões de litros, foram retidos. Após essa fase, a ANP determinou a interdição da refinaria do grupo por irregularidades como suspeita de falsa declaração de conteúdo, ausência de comprovação de refino e indícios de uso de aditivos não autorizados, possivelmente destinados à adulteração de produtos.
Valores bilionários
O volume financeiro constitui ponto de convergência entre as duas operações. Na Poço Lobato, a estimativa de sonegação alcança R$ 70 bilhões em um único ano. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), mencionou perdas mensais próximas de R$ 350 milhões. Durante a operação, os agentes também apreenderam dinheiro em espécie e pacotes de esmeraldas.
Na Carbono Oculto, a movimentação estimada da facção chega a R$ 52 bilhões, distribuídos em dezenas de fundos criados para blindagem patrimonial.
Devedor contumaz
As duas operações impulsionaram o apoio do governo à aprovação do projeto do devedor contumaz, aprovado em dezembro pela Câmara dos Deputados.
O termo se refere a empresas que deixam de pagar tributos de forma estratégica e consciente. Em todo o país, cerca de mil contribuintes se enquadram nesse perfil.
A proposta integra o pacote fiscal do governo federal e é vista como ferramenta de combate a organizações criminosas e à lavagem de dinheiro.
O que muda
O devedor contumaz não poderá receber benefícios fiscais, participar de licitações nem firmar contratos com a administração pública. Também ficará impedido de aderir à recuperação judicial e poderá ser considerado inapto no cadastro de contribuintes, o que gera novas restrições.
No âmbito federal, será considerado devedor contumaz o contribuinte com dívida injustificada superior a R$ 15 milhões e equivalente a mais de 100% do patrimônio. Em estados e municípios, o enquadramento ocorre em casos de inadimplência em pelo menos quatro períodos consecutivos ou seis alternados, dentro de um intervalo de 12 meses.
Importância
Em entrevista, o economista Rodrigo Simões avaliou o projeto como “interessante” ao destacar que há empresas que se beneficiam da prática de acumular dívidas tributárias.
“Quando essas empresas deixam de pagar impostos, não prejudicam o governo, mas a população como um todo. Falta dinheiro para saúde, segurança, educação e serviços essenciais. Nesse sentido, o ministro Fernando Haddad acerta ao buscar esse enfrentamento”, afirmou.
Alô Valparaíso/* Com as informações do R7 | Foto: Divulgação/Receita Federal


