Em vez de reduzir, remédios podem prolongar dores nas costas; entenda
Estima-se que quatro em cada cinco pessoas tenham dor lombar, segundo OMS
Cientistas brasileiros à frente de um estudo que propôs uma mudança na compreensão e no tratamento da inflamação e da dor investigam agora outras formas de aliviar o sofrimento. Publicada no periódico científico Science Translational Medicine (STM) e com ampla repercussão internacional, a pesquisa sugeriu que alguns dos medicamentos mais usados para aliviar a dor lombar podem, em vez disso, prolongá-la.
Estima-se que nada menos do que quatro em cada cinco pessoas tenham dor lombar, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). É a mais comum das dores. E elas são muitas e frequentes. Cerca de 20% da população mundial sofre com dores crônicas severas o suficiente para reduzir a qualidade de vida.
É um sofrimento que permanece sem tratamento eficiente, afirma o brasileiro Lucas Lima, um dos principais autores do estudo e cientista do Centro de Pesquisa da Dor da Universidade McGill, em Montreal, no Canadá.
O estudo sugere uma verdadeira mudança de paradigma ao dizer que controlar a inflamação da lesão com corticosteroides e anti-inflamatórios não esteroides pode transformar uma dor aguda em crônica, aquela que persiste por três meses ou mais.
A cientista Gabrielle Guanaes Dutra, também do grupo da McGill, observa que combater a dor bloqueando a inflamação sempre pareceu o mais lógico a fazer. Porém, o estudo revelou evidências de que isso, na verdade, impede o processo de recuperação natural do organismo de uma lesão e deixa como sequela a cronificação da dor. A seguir, os pesquisadores revelam detalhes do estudo.
Lucas Lima diz que o estudo abre caminho para uma mudança de paradigma ao sugerir que a inflamação decorrente de lesões não deve ser tratada e que é justamente o bloqueio do processo inflamatório reparador que leva à cronificação da dor. O melhor seria deixar o processo de inflamação seguir seu curso, dando ao corpo a chance de se recuperar de uma lesão. O estudo ilumina possíveis caminhos para tratar a dor crônica e abre uma janela na compreensão da inflamação, destaca Gabrielle Dutra.
Sem agonia
Não interferir na inflamação não quer dizer que a dor aguda deve ser deixada sem alívio, frisam os cientistas. Até porque a dor aguda, quando não tratada, vira um fator de risco para que se torne crônica. Existem analgésicos que não interferem na inflamação, caso do paracetamol, da lidocaína, da morfina e da gabapentina.
A inflamação é a forma como o corpo alerta o sistema imunológico sobre lesões ou risco de infecções. Nesse processo, diferentes tipos de células são enviadas para a região afetada, para remover tecidos que tenham sido danificados, promover cicatrização, eliminar possíveis bactérias e vírus que estejam infectando o local.
Para que serve a dor
A dor faz parte do processo inflamatório, com a função de alerta. Por exemplo, em uma torção do tornozelo é preciso que a área afetada fique imobilizada por um tempo para que possa cicatrizar. A dor indica que não se deve movimentar a região nem colocar peso sobre o seu tornozelo. Mas, mesmo com o conhecimento da função do processo inflamatório, observa Gabrielle Dutra, no tratamento o instinto tem sido bloquear a resposta inflamatória.
Dor, febre e medo são mecanismos naturais de defesa e alerta. São altamente complexos e ainda não completamente compreendidos. Pessoas que devido a uma doença genética não sentem dor morrem cedo porque se ferem mais, têm infecções recorrentes e seu organismo é incapaz de perceber e reagir.
Nem toda a inflamação é benéfica, adverte Lucas Lima. Há diferentes situações em que a inflamação é prejudicial. Na inflamação crônica, por exemplo, não existe mais a função de reparo. Um exemplo é a artrite reumatoide. Outra situação nociva ocorre quando o sistema imunológico tem uma resposta inflamatória exagerada, como no caso da sepse.
Segundo Lima, por muito tempo, o estudo da dor crônica tem focado na investigação do sistema nervoso. Em especial, do sistema nervoso central (o cérebro e a medula espinhal). Já se sabe que existe um fenômeno chamado sensibilização central. São alterações que fazem com que uma pessoa tenha maior sensibilidade à dor.
“Imaginamos que iríamos descobrir algum processo do sistema imune que fosse causa de dor crônica”, afirma Lucas Lima. Descobriram o contrário. Os cientistas viram que pessoas que se recuperam da dor aguda e não desenvolveram dor crônica tinham uma resposta imune inflamatória mais exacerbada, mais eficaz. E o sistema imunológico de pessoas com dor crônica era debilitado, pouco ativo.
A hipótese é que os anti-inflamatórios inibem a ação dos neutrófilos. Estes são a linha de frente das defesas do organismo, as primeiras células ativadas pelo sistema imunológico, seja para recuperar uma lesão ou atacar uma inflamação. Até agora os neutrófilos não eram associados à dor, pois se pensava que tinham papel no combate de infecções. A dor crônica seria sequela da interferência no funcionamento dos neutrófilos.
Se os achados do estudo forem reproduzidos em ensaios clínicos, que são pesquisas em que remédios são testados em pacientes, a dor aguda poderá passar a ser tratada sem interferência no processo inflamatório, destaca Lucas Lima. No estudo, os cientistas trabalharam com testes em animais, análises de bancos de dados genéticos e observações de pacientes com dor lombar.
Uma possibilidade seria melhorar a resposta imunológica das pessoas com o sistema de defesa enfraquecido. Lima diz que isso poderá ser feito por meio de novos medicamentos ou com exercício.
Gelo
Outra linha de pesquisa do grupo de Lima é o papel do gelo na inflamação. Ele é considerado anti-inflamatório. Mas pode não ser bem assim. Na verdade, pode apenas ter efeito analgésico e, em vez, de combater a inflamação, retardaria a recuperação. Um estudo japonês de 2021 mostrou que a aplicação de gelo após uma lesão muscular atrasa o reparo do tecido. Quando se aplica gelo, o músculo demora mais tempo a se regenerar. A hipótese de Lima é que ao reduzir a circulação sanguínea, o gelo dificulta a migração de células do sistema imunológico ao local da lesão, prejudicando a recuperação do tecido danificado.
*Da redação Alô/ Com informações de Mais Goiás